Agora vou analisar o filme em seus aspectos político-econômicos com um
pouco mais de profundidade, não a profundidade necessária para entender a
complexidade do tema, pois isto demanda uma vida de dedicação, mas a
profundidade possível no momento, que já será suficiente para romper o tecido
da superfície em que ficam a maioria das ideologias dos intelectuais de orelha
de livro.
Se você pesquisar no google e começar a ler as críticas políticas do
filme vai perceber que TODAS elas vão dizer a mesma coisa, o filme retrata uma
sociedade capitalista doente com seu capitalismo selvagem e seu projeto
neoliberal, pensando somente no lucro do capital e esquecendo da humanidade,
deixando a maior parte do povo à margem da riqueza, criando assim uma revolta
contra o próprio sistema, em que o Coringa foi o símbolo.
Vou ir um pouco além disso e
investigar os aspectos ideológicos do filme em detalhes.
Sindicatos
O filme começa com um jornal da rádio noticiando a greve do sindicato dos
lixeiros, já trazendo de cara um aspecto que pode ser analisado a partir do antagonismo
entre” direita” e “esquerda”. Logo em seguida à notícia sobre o sindicato dos
lixeiros vem uma notícia sobre o sindicato dos proprietários de imóveis, já
deixando implícito uma contradição entre as ideologias, enquanto os socialistas
acreditam que os sindicatos trabalhistas são ferramentas importantes para a
justiça social, a direita tem como uma de suas bases fundamentais a crença no
direito natural de propriedade como um dos alicerces para a criação de uma sociedade
justa. Pode parecer loucura perceber este detalhe, porém não é o único
explorado pelo diretor Todd Phillips*.
Um dos pilares principais da esquerda é a “luta de classes”, por isso os movimentos sindicais são defendidos, na
causa humanitária, por lutarem contra as explorações capitalistas, exigindo
melhores salários e melhores condições de trabalho afim de diminuir as
injustiças sociais, num mundo onde os burgueses abocanham a maior parte do
lucro deixando somente migalhas para
serem distribuídas entre os pobres, gerando a famosa pirâmide capitalista. O Estado
deve, então, ser responsável por prover políticas públicas que detenham o
crescimento da mais-valia em detrimento da distribuição igualitária de renda,
transformando a sociedade em um ambiente sem diferenças discrepantes e
injustas, dando oportunidades iguais para todos.
A direita, por sua vez, não acredita na luta de classes, mas sim que o
laissez faire, ou seja, o livre mercado, traz prosperidade à nação que consegue
aplicá-la em sua inteireza (Adam Smith – A riqueza das nações). As
desigualdades existem e são naturais, mas todos prosperam no final. Para isto é
preciso que o mercado esteja com suas engrenagens bem engraxadas, os
sindicatos, em sua grande maioria, representam ferrugens que atrapalham este
movimento em direção à riqueza das nações, pois o salário deve estar submetido
às leis do mercado, tratando o empresário como um cliente que compra pelo o
capital humano (força de trabalho) com um preço que se regulará seguindo à lei
de oferta e demanda. Este preço vai ser um dos custos de produção, que
refletira no preço final do produto vendido no comércio e é muito importante,
pois representa, assim como o preço de todas as coisas, um ente que carrega
informações sobre as necessidades dos consumidores.
Quando, então, este valor é pré-fixado com algum acordo, fora da dinâmica
natural do mercado, acaba por gerar distorções nesta informação que implicarão
numa série de problemas econômicos que trarão como consequência a pobreza; assim,
os economistas liberais explicam que as crises do capitalismo, como as de 1929
e 2008 são decorrentes destas distorções. Do mesmo modo que interferir
arbitrariamente nos salários resulta em aumento de preços, interferências (pelo
governo, ou grupos poderosos) em qualquer variável macroeconômica: taxa de
juros, câmbio, impressão de moedas, facilitação de créditos, resultarão num mercado
que não expressa a vontade dos consumidores, e essa “mentira” acabará
estourando em algum momento, sendo, este fenômeno, mais conhecido como estouro
da bolha.
Isso pode ser visto na teoria austríaca dos ciclos econômicos, estes
austríacos que são chamados de neoliberais e explicam que as depressões são
causadas por políticas públicas intervencionistas, contrariando o senso comum,
influenciado pelo pensamento de esquerda, que acredita num capitalismo intrinsicamente
cíclico, ou seja, tem seu boom (expansão) e seu bust (recessão).
Laranja mecânica
Logo no início vemos uma cena que mostra como a cidade de Gothan está
passando por um momento de crise, suja e violenta, mostrando jovens roubando e
espancando o palhaço em um beco, remetendo ao clássico de Stanley Kubrick,
Laranja Mecânica, onde, em uma sociedade devastada, jovens espancam um velho
por puro prazer na crueldade (conceito de ultraviolência).
Também vemos como Arthur Fleck percebe que as coisas estão ruins e a
assistente social explica isso como uma tensão de classes “eles não ligam para
pessoas como você, e como eu”.
Com isso podemos pensar de novo nas diferenças de visões ideológicas,
enquanto a esquerda culpa o capitalismo selvagem pela criação de desigualdades
e consequentemente violência, a direita conservadora encara este episódio como
a degradação dos valores morais, e das instituições (família, igreja, leis,
...).
Assistência social
Chegamos, então, em um ponto crucial de divergência, enquanto a esquerda
defende que o Estado deve assumir o papel de proporcionar igualdade de
oportunidade aos cidadãos, a direita defende que o Estado gera pobreza,
desigualdade levando a sociedade a um estado de servidão (Hayek – O caminho da
servidão).
Podemos notar na cena, em que Arthur está numa consulta com uma
assistente social, ele percebendo que ela não está prestando atenção nos seus
reais problemas, ela nunca ouviu o que ele realmente tinha a dizer e nunca
pensou nos seus reais problemas, aflições e visões do mundo e de si mesmo, sua
consulta era mecanizada, sempre com as mesmas perguntas, sempre o mesmo
protocolo; a sala era a típica de um serviço público: conseguimos sentir o
cheiro de almoxarifado, com aqueles arquivos velhos empilhados juntando poeira
há anos.
Com isso podemos refletir sobre nossa discussão principal. A esquerda
defende o estado de bem estar social, ou seja, os serviços básicos e
fundamentais devem ser obrigação do Estado, pois estes não são mercadorias para
serem tratados no mercado. Já os liberais econômicos acreditam, não em
simplesmente ignorá-los (omo pensa a maioria sobre a direita) mas, que as leis
de mercado tornarão todos os serviços, inclusive os fundamentais, mais
eficientes. Mesmo que o governo possa dar alguma assistência a quem não
conseguir acessá-lo sozinho, deve ser algo emergencial e como dotes dados aos
mais pobres ao invés de deixar os serviços sendo administrados pelo governo
ineficiente. Posso dar o exemplo do Milton Friedman (também neoliberal, mas da
escola de Chicago), que propõe que as escolas sejam particulares, ou seja, o
governo não terá mais o custo de arcar com a escola e não será mais responsável
pela geração da qualidade de ensino (falta de qualidade), mas ele será
responsável pela fiscalização, para que todas as escolas tenham pelo menos um
currículo mínimo comum e, aos que não tiverem condições de pagar pelos estudos,
o governo proporciona um voucher, dando uma quantia às famílias para que elas
mesmas decidam em qual escola colocar os filhos. Com isso o mercado fará das
escolas muito mais eficientes, e autônomas, além de atingir a todos,
democratizando o ensino (Friedman, M. – Capitalismo e liberdade).
Capitalismo Selvagem
À primeira impressão deixada é a de que Coringa é um fenômeno decorrente
das injustiças do capitalismo, a cidade está toda submersa neste ambiente da
luta de classes, os jornais, as manifestações, a eleição de um barão de bucho
cheio que frequenta os salões da aristocracia e a própria assistente social. No
meio desta guerra, o Coringa surge como um símbolo da quebra do establishment.
Porém, quando colocamos nossa roupa de mergulho e afundamos novamente na
profundidade da realidade, damos de cara com um homem que foi vítima, não do
capitalismo selvagem, mas da falta de amor familiar.
Podemos ver isto ao analisar as condições econômicas do Arthur: ele era
um homem com uma doença terrível, causada por traumas cranianos que os
namorados de sua mãe lhe causaram, ainda assim, ele morava em uma residência
relativamente boa (melhor do que a minha) e tinha um emprego que não representava
a total alienação descrita por Marx, onde o trabalhador realiza uma tarefa que
não faz sentido algum, é apenas um meio de conseguir sua subsistência e sua
função não lhe proporciona satisfação alguma (Marx K. – O capital). No caso de
Arthur, vemos um artista, que trabalhava ajudando criancinhas doentes no
hospital, brincando e dançando! Ou seja, era um emprego com condições de lhe
proporcionar muita satisfação pessoal e nenhuma alienação; o próprio diz adorar
o emprego (na cena em que está sendo demitido por levar um revolver à
apresentação).
Depois de ser demitido, ele ainda teve chance de ser um Comediante de
Stand-up, mostrando a mobilidade que uma economia capitalista proporciona.
Mesmo tendo falhado em decorrência de sua risada crônica, ele teve a
oportunidade de se apresentar na televisão, no talk show de maior sucesso no
país. Claro que só conseguiu esta chance
pois o apresentador Franklin Murray (Robert de Niro) estava caçoando de seu
vexame público, porém isto não anula o fato de que um mercado pujante oferece
oportunidades incontáveis para todo tipo de talento, além dos teóricos
capitalistas precerem que o ser humano é egoísta por natureza e a economia é
baseada nisto. O estado, tem, então, papel protagonista em♣manter a ordem e a segurança com suas instituições, seus
poderes independes e sua constituição.
"O que vai gerar a riqueza das nações é o fato de cada indivíduo
procurar o seu desenvolvimento e crescimento econômico pessoal"
- Adam
Smith
Ao contrário, os comunistas,
professam uma sociedade utópica, o fim do Estado e da exploração, como se isso
fosse elevar naturalmente o homem a um estado de harmonia com seus semelhantes.
“Os comunistas se recusam a dissimular
suas opiniões e seus projetos. Proclamam abertamente que seus objetivos não
podem ser alcançados senão pela derrubada violenta de toda a ordem social
passada. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista! Os
proletários nada têm a perder se não suas cadeias. Tem um mundo a ganhar.
Proletários de todos os países,
uni-vos!”
- (Marx/Engels – o manifesto do
partido comunista)
Família
Chegando então ao final de minha análise, não poderia deixar de falar do
tema central do filme, a instituição família!
Por fim, quando o
apresentador Murray pergunta ao palhaço se ele estava pintado porque pertencia
a algum movimento social, Coringa respondeu que não era político e não estava interessado nestas coisas. E
realmente, ao longo do filme é claro que Arthur tem um drama pessoal que foi
transformado involuntariamente em um símbolo da revolução que estava por vir. É
óbvio que ele se inflamou e sentiu prazer em alguns momentos, sentindo-se
percebido pela sociedade, com o conforto do sentimento de pertencimento ao ver
pessoas o imitando, e até o idolatrando, porém aquela luta não era a dele, em
vários momentos do filme quando é mostrado seus sentimentos e ambições, se nós,
espectadores, prestarmos a atenção, que deveria ser o objeto principal de
trabalho da assistente social, que estava pensando mais em seu emprego público
e em como não ligavam para pessoas como ela, vamos perceber que o que ele mais
queria era o ceio familiar.
Temos a cena onde ele sonha estar na plateia do seu programa televisivo
favorito, onde é percebido pelo apresentador e chamado ao palco. Neste momento,
Murray ignora toda a plateia e diz com estima que trocaria todo aquele show
para ter um filho como Fleck. Com isso podemos notar que seu problema mais
profundo era a falta de uma família e não um problema econômico ou profissional
ou seja lá o que as injustiças sociais trazem aos homens.
Também temos a cena onde ele, enganado por sua mãe, acreditando ser filho
de Thomas Wayne [(ou seja, irmão do Bruce Wayne (Batman)] e ao encontrá-lo no cinema,
se despe de sua roupa roubada de garçom (numa simbologia perfeita de sua saída
do mundo de classes em guerra e entrada num mundo de ternura familiar) e tenta
conseguir o afeto do pseudo pai, mostrando que a única coisa que ele desejava
naquele momento era ter um pai que o abraçasse.
É importante notar outra delicadeza do diretor ao colocar, nesta cena do
cinema, o filme tempos modernos de Charlie Chaplin, uma obra incrível de
crítica ao capitalismo industrial.
Fim
O ver este filme através da superfície somos levados a crer que Thomas Wayne, um burguês explorador que se
tornaria prefeito de Gothan city, engravidou uma empregada e a jogou na rua
para criar o filho sozinha, Arthut Fleck, vítima desta atrocidade, cresceu
marginalizado, pobre e doente tendo por fim, e por consequência óbvia, se
tornando o pivô de uma revolução contra os ricos onde, em meio ao caos, a
justiça foi feita: Um assassinato daquele que gerou miséria e violência.
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