Hebert entropia

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Morreu na contra mão atrapalhando o tráfego

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

 Deus lhe pague!!!


Chico Buarque - construção
Amou daquela vez como se fosse a última 
Beijou sua mulher como se fosse a última 
E cada filho seu como se fosse o único 
E atravessou a rua com seu passo tímido
O imigrande nordestino tímido que nunca largaria sua esposa, ela seria a última mulher em sua vida, arrumou um trabalho, deixou a mulher em casa com os filhos, filhos que educava como se fossem únicos.




Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico


Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Se sentiu uma engrenagem da industria capitalista, aprendeu a trabalhar, fez paredes sólidas, se sentiu um mágico e se emocionou por ter uma função no mundo.



Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe


Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago


Dançou e gargalhou como se ouvisse música


E tropeçou no céu como se fosse um bêbado


E flutuou no ar como se fosse um pássaro


E se acabou no chão feito um pacote flácido


Agonizou no meio do passeio público


Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Estava exausto, comeu por merecimento, se afogou na bebida, se sentiu livre, caiu de bêbado num cenário de trânsito metropolitano.



Amou daquela vez como se fosse o último


Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Amou sua mulher como se fosse o último a amá-la, porém, já não o seria , ela já não era a única e ele já se tornara alcoólatra, antes atravessava a rua com seus passos tímidos, agora, bêbado. Seus filhos já eram tratados como despesas.



Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas


Tijolo com tijolo num desenho lógico


Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Trabalhou bêbado, como se estivesse sóbrio, ergueu paredes quase que por mágica, não sólidas como as de antes. Seus olhos já refletem a cidade grande, barulhenta e impessoal que dominou sua cabeça.



Sentou pra descansar como se fosse um príncipe


Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo


Bebeu e soluçou como se fosse máquina


Dançou e gargalhou como se fosse o próximo


E tropeçou no céu como se ouvisse música


E flutuou no ar como se fosse sábado


E se acabou no chão feito um pacote tímido


Agonizou no meio do passeio náufrago


Morreu na contramão atrapalhando o público
Sentou pra descansar se sentindo merecedor sem ser, comeu o feijão com arroz se fosse o máximo, bebeu como de costume, como uma máquina que repete sempre a mesma função, se sentiu livre como se tivesse terminado a semana, antes de terminar, se sentiu o próximo a tirar sorte grande, como se a vida estivesse no rumo certo. Se afogou em seu excesso.



Amou daquela vez como se fosse máquina


Beijou sua mulher como se fosse lógico


Amou como uma máquina, máquina não ama, máquina repete a lógica programada.
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro


E flutuou no ar como se fosse um príncipe


E se acabou no chão feito um pacote bêbado


Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

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